domingo, 4 de dezembro de 2011

3.3. CIDADES NA AMÉRICA PORTUGUESA.


OBS: O texto abaixo não tem pretensão autoral. Trata-se de notas e ‘fichamentos’ de partes da Bibliografia referenciada em seguida e que foram feitos apenas com caráter didático.


Diferenças na formação de cidades na América lusa e a na América hispânica

Os espanhóis, desde a formação dos primeiros núcleos urbanos na América, tiveram sempre cuidados com o planejamento destes, ordenando-os através de um plano do tipo tabuleiro xadrez; ou seja, uma quadrícula regular formada por quarteirões e ruas. Disposição esta que era inclusive determinada por ordenação real mais conhecida por Leis de Índias, e que impunha alinhamentos e numerosas prescrições a respeito do traçado e das edificações
urbanas.
A origem destas cidades na América hispânica parece estar mais próxima do traçado regular das cidadelas medievais do último período do que propriamente dos planos centralizados para cidades, elaboradas pelo Renascimento. De qualquer forma, é nítido que na base dessas prescrições reais já se pode encontrar influências do célebre tratado de Vitrúvio redescoberto no início do Renascimento e que propugnava, na parte dedicada às cidades, um planejamento regular que facilitasse a salubridade e as condições sanitárias da
cidade, inclusive quanto a insolação e ventilação.
Já os portugueses, na implementação de suas cidades, tomaram partido distinto. Segundo Robert Smith, para qualquer lugar que iam carregavam a tradição lusa das cidades alta e baixa, das ladeiras íngremes e tortuosas fazendo a ligação entre os dois níveis; contudo, podemos pensar também que sentido a delicada posição de seus núcleos primígenos em terra americana - em número insignificante e espalhados ao longo de uma costa imensa, cercados de inimigos por todos os lados (índios inóspitos e corsários e invasores de outras nações) – que os portugueses sentiram a necessidade de adotar um partido do tipo acrópole, encarapitado de forma defensiva no topo de uma elevação. Pelo menos é assim a formação das primeiras cidades como Salvador, Rio de Janeiro e Vitória. Tanto a fundação do Rio de Janeiro como a da cidade de Vitória, são paradigmáticas da predominância de um partido defensivo do tipo acrópole: o Rio de Janeiro, que tinha seu núcleo primeiramente sediado próximo à base do morro Cara de Cão, logo após a expulsão dos franceses da baía de Guanabara foi transferido para o alto do morro do Castelo, local preferível pois onde podia se vislumbrar e controlar a entrada da baía; Vitória por sua vez teria sido fundada após o abandono do núcleo original de Vila Velha – local que não foi considerado satisfatório – o novo local, mais recuado para o interior da baía, também era em posição elevada, como no Rio de Janeiro.
É evidente que construídos em topos de elevações os núcleos históricos das cidades portuguesas estavam mais sujeitos às conformações da topografia do que se estivessem sendo construídos em regiões planas da várzea, o que fazia com que nos seus traçados predominasse a irregularidade. É certo também que as possibilidades de espaço nem sempre eram muitas no alto das colinas, obrigando à disposições estranguladas e em algumas vezes, como é o caso do Rio de Janeiro, quase que de imediato obrigando a expansão da cidade a se dar na direção da várzea.
Não é verdade que aos portugueses faltasse disciplina, ou mesmo espírito organizador no sentido da construção de uma cidade planejada regularmente, como a dos espanhóis. Como foi dito, o partido inicial adotado foi distinto, é justo que gerasse, portanto, espaços distintos. Dentro desses espaços, como veremos, houve sempre uma procura por ordenação – como é o caso das  Residências e Reduções jesuíticas, organizadas em torno de praças regulares e que se tornaram, posteriormente, núcleos de muitas vilas. Além disso, a partir
do século XVIII quando a política da metrópole redirecionou-se e passou a dar mais atenção para a colonização do interior da América, visando através de uma tática do utis possidetis - quem utiliza de fato possui - se apossar das terras do interior da América até então pertencentes à Espanha e onde acreditavam que havia ouro, os portugueses, através de uma política de fundação de cidades, utilizaram-se do planejamento regular e em quadras do tipo tabuleiro xadrez.
As Cartas Régias de fundação destas cidades, assinadas por D. João V - o monarca português que empreendeu a tarefa da colonização do interior - vinham sempre com determinações a respeito de um planejamento regular, tal como na fundação da Vila da Santíssima Trindade em Mato Grosso, cuja Carta data de 1746, e onde se pode ler que; “o sítio que se eleger para a fundação da dita Vila seja o mais saudável, e em que haja a boa água para beber, e lenha bastante e se determine o lugar da Praça no meio da qual, se levante o pelourinho e se assinale área para o edifício da Igreja capaz de receber competente numero de fregueses, quando a povoação se aumente, e fará delinear por linhas retas, a área para as casas se edificarem deixando ruas largas e direitas, e em primeiro lugar se determine nesta área, as que se devem fazer, para a Câmara, Cadeia, Casa das Audiências, e mais oficinas públicas, e os oficiais da Câmara depois de eleitos darão os sítios que se lhes pedirem para casas e quintais nos lugares delineados e as ditas casas em todo o tempo serão feitas todas no mesmo perfil no exterior, ainda que no interior as fará cada morador à sua vontade, de sorte que se conserve a mesma formosura da terra e a mesma largura das ruas”.
Pelo documento acima se podem perceber as preocupações urbanísticas da administração lusa: a caracterização do poder temporal (representado pelo pelourinho, local de castigo dos criminosos) junto ao poder religioso (igreja), ambos sediados na praça principal da nova Vila; a construção imediata dos prédios administrativos, Casa de Câmara e Cadeia (o partido típico no Brasil é de uma única construção onde a cadeia é em geral em baixo e o conselho municipal no sobrado); as preocupações com um traçado regular da malha urbana e com um tratamento fachadístico padronizado para todas as casas, o que, dado os devidos descontos às proporções e monumentalidades, lembra os implementos urbanísticos do barroco francês na Paris de Luis XIV.
Apresentamos abaixo algumas das vilas e cidades fundadas no Brasil, dentro da evolução delineada acima.

  • Salvador

Salvador foi fundada em 1549 e marca uma nova etapa no processo de colonização lusa após o fracasso da política de descentralização estabelecida pelas capitanias hereditárias.
Passa-se a procurar a centralização proporcionada pela construção de uma capital situada quase no centro geométrico da costa portuguesa na América.
Sobre o ponto de vista urbano, Salvador nasce como uma praça-forte. O Regimento de El Rei endereçado a Tomé de Souza determinava que a fortaleza a ser construída fosse feita em local mais para dentro da baía e em área que possibilitasse a expansão futura de um povoado grande. O local escolhido foi o topo de uma colina suficientemente ampla para o desenvolvimento da cidade nas suas primeiras décadas, o traçado regular do núcleo mais antigo, parece ter tido a autoria do mestre Luis Dias, o responsável pelas primeiras construções governamentais. 
Prospecto pela marinha a cidade de Salvador/ 1756

A planta da cidade de 1624, além de vistas da mesma época, feita pelos invasores holandeses, mostram uma cidade ainda encarapitada no alto de uma elevação, murada, com descidas para as partes baixas defendidas por altos portões, e tendo um plano inclinado enquanto monta-carga para fazer o transporte de mercadorias dos trapiches situados à beira-mar, para a cidade alta.
Salvador em meados do século XVI


Aparecem nitidamente duas praças, sendo a da esquerda o Terreiro de Jesus, centro religioso da vila onde se situavam o colégio e a igreja dos Jesuítas, a igreja dos clérigos laicos, a igreja da Ordem Terceira de São Domingos e aos fundos, a igreja dos franciscanos; e a praça da direita, onde se situava o Palácio do governo e Casa de Câmara e Cadeia. Nenhuma das duas praças é regular, mas é possível ver uma certa regularidade e uma certa predominância do traçado em xadrez nos quarteirões circunvizinhos.
O desenvolvimento posterior da cidade vai se dar no sentido da manutenção do centro administrativo e religioso na parte alta, e o surgimento de uma cidade baixa que de início abriga apenas os armazéns portuários (trapiches), mas que com o crescimento da cidade, vai se tornar a área comercial por excelência assim como uma área habitacional destinada a pessoas de menor poder aquisitivo e social.

  • Rio de Janeiro

A cidade do Rio de Janeiro, como já havíamos dito, foi fundada em 1565 no istmo situado entre o morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, lugar exíguo que só se justificou enquanto local transitório, pela sua significação militar como sentinela da barra e trampolim para a conquista da baía, até a data na mão de franceses e de seus aliados tamoios. Logo após a expulsão dos franceses tratou-se da transferência da cidade para o alto do morro do Castelo.
As razões da escolha do novo local foram puramente militares; no alto do referido morro era possível vislumbrar quem invadia a baía, e, principalmente, a posição dos fortes construídos e posicionados na embocadura da baía permitia que se travasse uma batalha na entrada, sem muitos riscos de se atingir a cidade, posicionada mais ao fundo.
A primeira das construções no alto do morro, além da igreja matriz, do colégio dos Jesuítas e da casa de Câmara e Cadeia, foi a fortaleza do Castelo cercada de muralhas com muitos baluartes e artilharia, de acordo com as informações que o próprio Mem de Sá enviou ao rei. Ou seja, uma cidade praça-forte; na sua traça não havia fronteiras entre a arquitetura militar e o urbanismo.

Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro/ 1713

No caso do Rio, contudo, a descida para a várzea não se fez esperar. Talvez porque o espaço no topo do morro não fosse suficiente para abrigar uma expansão mínima da cidade, o fato é que nos anos seguintes ao da fundação, algumas ermidas já estavam sendo construídas na parte baixa, contudo, nas primeiras décadas as construções mais importantes que foram construídas fora dos limites do Castelo o foram também construídas no cimo de outros morros próximos, como o morro de Santo Antônio que abrigou o convento dos franciscanos e o morro de São Bento, local escolhido pelos beneditinos para implantação do seu convento. A opção pelo topo de morros tinha um caráter defensivo sem dúvida, porém não expressava menos uma opção pelo menor esforço, pois na várzea predominavam regiões pantanosas que exigiam serviços custosos de drenagem e aterro. A cidade pairava assim, no seu início, no alto de três morros, até que a ocupação da várzea se deu de forma mais expressiva. Ao contrário de Salvador, contudo, a descida para a várzea significou um esvaziamento político do núcleo original, pois foram transferidas para a parte baixa da cidade tanto a casa de Câmara e Cadeia como a casa do governador e a igreja da Sé; o novo núcleo político e religioso foi se instalar em torno de uma praça voltada para a baía, que tal como a principal praça de Lisboa – voltada para o Tejo e onde se encontrava o palácio real – passará a ser chamada de Terreiro do Paço.
A leitura do traçado destes quarteirões novos, situados na várzea, sugere que a linha mestra da cidade era a sua rua principal, a rua Direita, que acompanhava o contorno da praia e, portanto, era curva, indo da base do morro do Castelo até a base do morro de São Bento: as duas extremidades da cidade e que durante algum tempo a contiveram, ou seja, a cidade só crescia para os fundos. A partir desta rua foram traçadas perpendiculares retas que se
afastavam, tais como os espinhos de uma coroa, e que eram cruzadas por outras ruas que corriam “paralelas” à geratriz, ou seja, à rua Direita.

  • Vitória

Quando Vitória foi fundada em 1549 por Vasco Fernandes Coutinho já existia uma povoação próxima que passou a ser denominada de Vila Velha, e que, no entanto, foi abandonada enquanto centro político da capitania porque a nova posição apresentava melhores condições defensivas, como foi dito na Introdução. O novo posicionamento era elevado, o que condicionou os traçados das vias à uma topografia irregular, ajustada aos acidentes do terreno e inscrita no contorno marítimo. O prédio mais significativo durante o período colonial foi o do Colégio dos Jesuítas (hoje palácio do Governo), com as duas torres da igreja sobressaindo-se no perfil do conjunto urbano, sendo que a mais alta destas torres teria sido construída apenas no século XVIII.

Prospecto da Vila da Vitória

Diante do Colégio situava-se um largo de dimensões irregulares e modestas tendo do lado oposto, a igreja da Misericórdia - hoje desaparecida. Saint-Hilaire que passou pelo Espírito Santo em 1818 e que constatou nas vilas a existência de uma praça em frente às igrejas matrizes comportando-se como um espaço gerador dos traçados urbanos, chamou atenção para a mesquinhez da existente em Vitória, afirmando que só com muita condescendência poderia ser chamada de praça. A cidade no século XVIII começava na região baixa do Campinho - onde hoje é o Parque Moscoso – passando em linha pelo Colégio e igreja dos jesuítas, a igreja da Misericórdia, a Casa de Câmara e Cadeia, a igreja Matriz – onde hoje está a catedral, em estilo neogótico – e por último a igreja do Rosário. Após este último templo a cidade ainda se espraiava um pouco mais no nível do oceano, e terminava.


VILAS PLANIFICADAS DO SÉCULO XVIII

  • Vila Viçosa – Ba, c.1769
Mapa da Nova Vila Viçosa

Segundo Nestor Goulart Reis trata-se de um típico trabalho de urbanismo da administração pombalina para reorganização de antigas aldeias indígenas, cuja população passava a ser reunida juntamente com portugueses, constituindo assim um novo sistema administrativo de base municipal. Esses traçados, com evidente regularidade geométrica e duas praças, uma com função religiosa onde podemos ver a igreja matriz e o cruzeiro da vila e a outra com função administrativa, onde se destaca nitidamente o pelourinho, eram como versões simplificadas na aplicação das antigas Leis das Indias (as mesmas que haviam
determinado a regularidade das cidades na América hispânica). Mas, no caso, com requintes de controle da aparência das casas pelo lado das vias públicas, pois as fachadas eram todas iguais, dando continuidade a tradição urbanística já instaurada na administração de D. João V.


  • Vila de Alcobaça (sul da Bahia) c. 1774

Mapa da nova Villa de Alcobaça

Ainda Nestor Goulart chama a atenção para a semelhança estreita entre o traçado dessa vila e a da Vila do Prado, na mesma capitania. Ao mesmo tempo em que havia um certo refinamento nos procedimentos urbanísticos adotados em larga escala, com apoio nos trabalhos dos engenheiros militares, durante o século XVIII, devemos lembrar que se tratava de procedimentos relativamente padronizados e que terminavam por conduzir a uma certa repetição das soluções.
Observar o fato da proximidade com o rio como uma condição sine qua non
para a escolha do local de fundação da vila (existência de água potável). No caso do plano em questão, a malha de ruas, curiosamente, não define a conformação das duas praças - a de função religiosa e a administrativa – pois parece que o espaço destas praças foi obtido com o afastamento dos quarteirões em volta; reparar no chanfro existente nos quarteirões das extremidades. Também aqui, o tratamento fachadístico regular é a regra. Os quarteirões das extremidades norte e sul estão incompletos como a sugerir que o crescimento da cidade deveria se dar nesta direção.


BIBLIOGRAFIA:
CARVALHO, José Antonio. A arte no Espírito Santo no período colonial: arquiteturacivil. Revista de Cultura da UFES. (29) pp: 27-36, 1984.
CHUECA GOITIA, Fernando. Breve história do urbanismo. Lisboa : Editorial Presença, 1996.
DELSON, Roberta Marx. Novas vilas para o Brasil-colônia: planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília : Alva-Ciord, 1997.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo : EDUSP : FAPESP, 2000.
SANTOS, Paulo F. Formação de cidades no Brasil colonial. V Colóquio Internacional de Estudos luso-brasileiros. Coimbra, 1968.





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